SÃO PAULO: IL CUORE
DELLA CITTÀ
(Texto publicado na Revista Bimestral de Arte e Cultura – Artescultura,
Ano 1 – n° 1, Novembro – Dezembro 1983 e versado pelo escultor Elvio Becheroni, publicado na Itália)
Proposta para a comunidade e os
técnicos debaterem o projeto da área central da cidade através da Câmara Municipal.
1-
HUMANIZAÇÃO DA MEGALÓPOLIS
A tendência da
maioria da população viver nas grandes cidades fez a megalópolis ser o maior
símbolo, desafio e meio ecológico do Homem atual. Homem este, formado ao longo
de milhões de anos, modificando uma gruta, os galhos de uma árvore ou aldeia
feita por ele com materiais "in natura". Porém, muito de repente, se
vê num habitat a ele imposto e sendo importante para mudá-lo, a megalópolis
destruiu-lhe o caráter tribal e agora atinge sua estrutura familiar. Faz apenas
um século que existe o escritório onde o homem se apresenta após 35 anos
processando papéis, segregado, sentado com luz artificial: o homem sedentário
com óculos e problemas de coluna entre outros maiores. Seu caráter atávico
reprimido, sua vivência comunitária condicionada, todo esse deseducamento tem
seu preço no indivíduo e na coletividade.
Sua vida em
comunidade é reservada à passividade nos grandes espetáculos: ver, viver e
pagar, armazenando uma carga de energia que explode ou lhe implode.
Pela necessidade
de restabelecer o equilíbrio entre as esferas individuais e coletivas, foi em
1951 o tema do VIII Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) em
Hoddeston, Inglaterra: "The Core of the City", sendo Core o Centro de
tudo e não o "Civic Center".
O Centro da
Cidade é um problema humano que o arquiteto não resolverá sem o historiador, o sociólogo e o médico
entre outros, mas principalmente a participação do próprio povo, através de
representações estruturadas das comunidades envolvidas.
2-
HISTÓRIA
Antigamente
tínhamos as cidades só na horizontal.
O poder
simbolizou-se na ocupação vertical. O Palácio Real ou o Templo dominavam a
parte central.
Mas foi na
Grécia, século V, onde nasceu a democracia que existia o "Agora",
praça quadrada do povo, rodeada de edifícios públicos, e na época helenística
rodeada pelo "stoa", um abrigo ao sol e chuva com colunas e átrios
onde formava-se a "opinião pública".
O Capitólio de
Roma, por Michelangelo, inclui no alto de uma colina uma praça trapezoidal,
escada em rampa e três edifícios ao fundo: palácio dos senadores, dos
conservadores e o museu. Ele criou um espaço V.O. a ser reconquistado, como
hoje é o nosso desafio.
Não foi outro
o sentido, quando o Concurso de Projetos para o Vale do Anhangabaú promovido
pelo IAB, gestão Cesar Bergstron e Emurb, acatando uma proposta que fiz quando
esta apresentou sua solução para ligar os dois lados do Vale por um conjunto de
divergentes passarelas. Após amplos debates com a comunidade lotando o
auditório da Caetano de Campos, definiu-se o critério contido no projeto
vencedor, dos arquitetos Jorge Wilheim, Rosa Kliass e equipe: uma Praça Central
ao pedestre contendo embaixo a solução viária no espaço só dos carros.
Aguardamos ansiosos a sua execução, com o incentivo do autor ser hoje o secretário
municipal de Planejamento.
Sentido
semelhante tinha a Avenida Paulista da gestão municipal Figueiredo Ferraz em
que na superfície só haveria trânsito local de veículos e amplos espaços ao
pedestre, e infelizmente sepultada em estado adiantado de obras pela deseconomia prefeito Colassuono.
O Centro de
São Paulo é filho de Prestes Maia com as Avenidas de Fundo de Vale e Viadutos.
Numa demonstração de pujança lá brotavam os principais edifícios. Do seu uso
intenso há três décadas surgiam vários edifícios com "galerias",
contendo na área particular um espaço público, abrindo-se à população os
emparedados quarteirões do Centro Novo como os primeiros projetos de Oscar
Niemeyer: Eiffel, Califórnia e Copan; do arquiteto Heep, o Itália; e dos
arquitetos Crocce, Aflalo e Gasperini, o Metrópole. Havia a esperança de ir-se
da Rua São Luis até a São João tomando chuva só na travessia das ruas. A
verticalização das galerias não aprovou e a novidade chegou à saturação.
Muito se
mexeu, mas pior confusão a História não registra que a implantação da Rótula do
carioca coronel Fontenelle. Naquela época Niemeyer sugeriu tirar todos os
carros do centro, exceto táxi. Anteriormente, quando aqui esteve o arquiteto
George Nelson sugeriu no Centro só carros tipo trombador de parque de Parque de
Diversões com partida e ligação temporizada por ficha telefônica.
As linhas de
ônibus papa-filas FNM Massari no Anhangabaú, que ao passar pelo lado de um Romi-Isetta
parecia que acabara de botar um ovo e nós considerávamos "up to date"
em tecnologia de transportes.
Dos carros lotações
"avenidas", me lembro ter andado em uma limousine Rolls-Royce que
antes servira ao Governador Ademar, mas pela pilotagem e cafonagem adicionada
poderia considerá-la desatinada em total enlouquecimento podando outra lotação
que servira ao Cardeal Mota. A, hoje lamentada, retirada dos bondes há vinte e
cinco anos e o atual plano de Trolleybus são mudanças feitas em etapas que
compararia a implantação do Minhocão como tratamento de choque, e que se não
foi perfeito é o que tem valido para descongestionamento. O referido elevado
felizmente deixou só em planos, um outro que saindo que saindo da Av. Senador
Queiroz passaria sobre a Av. Prestes Maia, seguindo a Ipiranga, a Consolação,
completando o anel viário.
Os arquitetos
Beno Perelmuter e Eduardo Corona sugeriram na década passada uma linha de
esteira rolante para pedestre utilizando os túneis e estações existentes e
fechados há mais de trinta anos, da Praça Dom José Gaspar pelos viadutos até a
Praça João Mendes. Esta obra de Prestes Maia, inaproveitada por onde passaria o
metrô. As estações são usadas hoje para Alistamento Militar e Serviço Funerário.
Nenhuma cidade pode ser perdulária para inaproveitar tal investimento como tem
sido feito.
Por isso,
quando do Concurso do Anhangabaú apresentei uma proposta de trem leve ligando
estes túneis e seguindo em monotrilho pelo canteiro central das avenidas São
Luis, Ipiranga, onde na Casper Líbero se ligaria outro que viria pela Rua do
Oriente, Mercado, 25 de Março, Florêncio de Abreu, propondo viaduto sobre o
Anhangabaú ligando à Rua Capitão Mor, Gen. Leitão, Casper Líbero, General Couto
Magalhães, servindo o comércio da Santa Efigênia, Estação entre a Júlio Prestes
e Luz; e finalmente pela José Paulino. Este segundo monotrilho elevado supriria
um comércio por sorte linear só das 8h às 18h à mesma freguesia atacadista e
que, por falta de estacionamento e infraestrutura comercial, está em risco de
ser engolido por shopping centers especializados, como talvez já comece
acontecer com a Nova Gasômetro, criado pelo Banco Interparts na Vila Guilherme,
reunindo os principais coureiros e madeireiros do Gasômetro, numa das maiores
ou hoje a maior construção em obras na Metrópole.
3-
ORÁCULO
O que
acontecerá com o Velho Gasômetro? De uma coisa tenho certeza: ele é mais
democrático que qualquer shopping. Vejamos, se alguém quiser lá se estabelecer
fazendo concorrência com os existentes não terá dificuldades, mas no shopping
será vetado.
Esse espaço
democrático existe em todo o comércio linear definido na linha do monotrilho
que propus, até que a Empresa Folha de São Paulo destine seus quarteirões,
inclusive a antiga Rodoviária. Engoliria num Shopping da Eletrônica a Rua Santa
Efigênia?
O Grupo Silvio
Santos estuda trazer os estúdios da Vila Maria para a Rua Jaceguai, que já é
predomínio dele e não inunda como acontece na Vila. Isto reforçaria o simpático
caráter boêmio do atual Bexiga. O que acontecerá no entorno?
O pior negócio de
São Paulo é ter um imóvel no Centro, de mais baixos aluguéis comerciais ou
residenciais. A falta de estacionamento espantou o poder aquisitivo e uma
década de falta de segurança pública levou-o a deterioração completa. Os
casarões do início do século, que como residência não se identifica com a
realidade social e, invadido pela expansão do Centro, estão se transformando em
escritórios de grandes companhias, bancos, pensão, casa de cômodos e cortiços.
A quantidade de cortiços na área central é hoje só comparável ao favelamento da
periferia, como retrato de nossa política econômica social que extingue a classe média, a tradicionalmente indecisa e decisiva, mas que mantinha o comércio no
Centro.
O melhor
negócio de São Paulo é ter, no mínimo, um quarteirão no centro, podendo criar o
ambiente desejado, já contando com toda infraestrutura existente e principalmente
podendo ter seu próprio sistema de segurança pública e estacionamento gratuito,
como os Shoppings Centers.
Assim é que
teremos o maior shopping da América do Sul: o Shopping Center Norte, que
ficaria mais bem servido se a Penitenciária se transformasse em denso conjunto
habitacional, embora nos falte presídios, e então estaria ligado à estação
metro Carandiru por um monotrilho elevado que até poderia ser o gaucho Aeromovel
Coester. Será possível? Acho viável tal linha desde que se prolongue até o
estacionamento do Palácio de Convenções do Anhembi.
O Playcenter
está daqueles lados, em área junto ao centro, mas insuficiente a seus
propósitos, uma possibilidade é incorporá-lo à Disneylândia com mais de 700
funcionários em 500.000
m² que o Grupo Silvio Santos estuda há 2 anos com
anteprojeto e maquetes prontos na Rua Jaceguai, pleiteando a concessão da área no Parque
Ecológico do Tietê. A Globo também estuda a mesma possibilidade, só comportamos
um, quem será? Onde? E será?
A Praça da Sé
tem sido bem usada como espaço do povo, embora entulhada pelos ambulantes.
Lamentável é a Praça Roosevelt que substituiu a esplanada dos grandes comícios
de Jânio e Ademar e virou do Supermercado, só nos falta fazerem um Shopping Center no Parque
Dom Pedro II. Aliás, isto seria a melhor documentação paulistana de hoje para a
posteridade: você preso num edifício controlado por circuitos de TV, deixando
lá fora, de maneira invisível, a realidade, induzida a comprar ali e aquilo,
enfim, George Orwell 1984! Varia de Shopping, mas as lojas são as mesmas, etc.
Reinaldo de Barros ao entregar os prêmios do Concurso do Anhangabaú prometeu
fazer outro para o Parque Dom Pedro II. Conversando em julho com o Secretário
Arnaldo Madeira e o presidente da Emurb não se dispuseram em fazê-lo agora,
apresentando-me prioridades na periferia, embora eu tenha conceituado o Parque
simbolizando o Centro estraçalhado e sua solução envolveria a área arrasada ao
longo do metrô entre as estações D. Pedro, Brás e Bresser. O Parque é uso
diário de grande parte da população que reside na zona leste e encontra emprego
no Centro ou por ele transita. Com o tamponamento do Tamanduateí tornou-o via
expressa, as laterais da Avenida do Estado serão vias de trânsito local,
permitindo ressurgir o comércio que lá existiu. No próximo janeiro, por esta
via expressa, em poucos minutos poderemos ir da marginal Tietê ao Ipiranga. A
obra continua e concluída ligará rapidamente marginal do Tietê com São Caetano
e Santo André, numa diametral passando pelo Parque Dom Pedro II e zona de baixa
densidade do Centro de São Paulo. E daí? Como ficará esta área de baixa
densidade? Agora a Prefeitura está sem dinheiro para obras e existindo uma
grande quantidade de profissionais dispostos a pensar a cidade, esta é a melhor
hora para se projetar.
4-
PROPOSTA
Como proposta
inicial do sociólogo Cesar Nascimento da Galeria Presença & Arte, e do
engenheiro Reginaldo Paiva, então coordenador da Divisão de Transportes do
Instituto de Engenharia, convidaram-me, como membro da Diretoria IAB –
Instituto dos Arquitetos do Brasil e a coordenação do MPGD – Movimento dos
Profissionais Por Um Governo Democrático, a debater o uso do Centro, ao que
somamos o arquiteto Beno Perelmuter do Instituto da Cidade, engenheiro
representando a AET – Associação de Estudos de Transportes, arquiteto Celso
Franco representando o IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil e o arquiteto
Willian Mumford, presidente do IBP – Instituto Brasileiro de Planejamento. Após
sucessivas reuniões, conclui-se propor à Câmara Municipal como representante do
povo, para ser órgão promotor de dois debates que se subsidiaram: o dos
técnicos e os da comunidade. Por diferenças de dialeto conviria separá-los e
junto contribuiriam ao Legislativo que proveria aos órgãos do Executivo, numa
ação conseqüente e não um debate a mais.
À espera e na
cobrança da ação do Legislativo Municipal desenvolvi estas linhas sobre o
urbano formado pelos barões afrancesados e edificados pelo imigrante oriental
da Liberdade, judeus do Bom Retiro e Higienópolis, adjacentes árabes da 25 de
Março e Paraíso, italianos da Mooca, Brás e Bexiga, e tantos mais. Tantos que,
procurando memória na figura popular do centro, identifiquei Germano Matias, Adoniran Barbosa e
Marcondes Machado (Gió Bananieri) que embora não tendo nada de italiano foram
seus legítimos representantes nesta anárquica metamorfose urbana. Heitor
Penteado inaugurava o prédio do Banco do Estado de São Paulo com a presença do então prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia, quando no alto do prédio Ibrahin Nobre, o Tribuno de 32, disse-lhes:
"Clamai silêncios que no peito enjaulo,
ante a paisagem que daqui se avista,
o chão, quem sabe, pode ser São Paulo,
porém o homem que nele habita, já não é paulista".
E então
"The Core", o centro desta São Paulo é também:
"Il cuore
della città".